Is this the real life? .-.


sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Bilhete

Por @ Ligiane em sexta-feira, fevereiro 05, 2010
Leia ouvindo:

O relógio da mesa de cabeceira marcava sete horas, ela puxou as cobertas até o pescoço e se encolheu na forma de um Z. A névoa da manhã estava fria e a réstia de sol que despertava por entre a janela entreaberta construía um contraste aconchegante entre frio e quente; uma mistura convidativa a se ficar mais umas horinhas sob as cobertas.

Fechou os olhos com força, porque o que ela queria, de verdade, naquele momento, era que aqueles sonhos impossíveis, mas envolventes, retornassem com a força da rebentação de uma onda. Estava tentada a esconder-se de si mesma atrás daquilo que a sua mente criava com perfeição enquanto dormia. Talvez nos sonhos ela pudesse fazer o contrário do que ela realmente era, ter o que ela não tinha, amar sem ser condenada, compartilhar segredos com alguém sem correr o risco de ser traída, ter experiências malucas e o melhor de tudo é que ninguém iria saber, porque o sonho é um mundo criado por aquele que o tem, uma atmosfera particular, que guarda os medos, os desejos e os sentimentos de alguém; o lado mais surreal e significativo da mente humana.

Mas arrastar-se para um mesmo sonho é como querer reverter o passado, voltar o ponteiro do relógio e fingir que nada aconteceu. Na sensação frustrada daquele que não consegue mandar em seus próprios sonhos, ela levantou-se e foi em direção a janela. Lá fora, o céu se mostrava em um azul celeste com o balé do movimento lento das nuvens, formando figuras disformes no infinito; o sol já brilhava com força refletindo seus cabelos castanhos num tom avermelhado, as calçadas estavam cobertas por um tapete feito de folhas que despiram as árvores no balanço do vento de outono. Puxou as cortinas até o canto das paredes e abriu a janela até mais onde não podia.

Logo ali, ao lado da cozinha onde ela se direcionara para pegar uma xícara de cappuccino, a sala conservava os vestígios de um encontro entre amigos do dia anterior. Três garrafas de champanha e cinco taças estavam pousadas sobre a mesa de centro, alguns DVDs de clássicos do cinema permaneciam espalhados pelo chão perto da televisão, cobertores amarrotados pelo sofá e uma caixa redonda que deixara vazar algumas fotos pelo tapete decorado.

Recostando-se na estante da sala, ela olhara para aquela desorganização boa. Boa no sentido de que guarda a união de cinco grandes amigos. A noite passada fora especial; um encontro para reunir os cinco inseparáveis da época do primeiro ano da faculdade. Tempos em que estavam transitando para uma nova fase de suas vidas, começando a crescer. Agora eram cinco adultos cheios de responsabilidades, que se encontravam para dividir suas experiências, suas aventuras.

Segurando a xícara com as duas mãos, ela fora se embrenhar nos cobertores embolados sobre o sofá, quando avistou dentre as fotografias caídas da caixa, uma em especial. Ficou ali, parada, olhando a foto por alguns segundos antes de reclinar-se para pega-lá.

Na foto amarelada pelo tempo, uma garota de cabelos castanhos, até aos ombros, olhar doce e vestida de um cashmere de tricô rosa, abraçava um jovem alto, bonito, de olhos verdes, elegantemente vestido de pulôver preto. E ela continuava ali, olhando a foto, com um meio sorriso estampado no rosto.

Um amor de colegial retratado em uma foto tirada casualmente, num daqueles invernos em que costumavam se encontrar embaixo de uma árvore no alto do morro, onde tinham uma vista perfeita das luzes da cidade.

Pousou a xícara sobre a mesa de centro ao lado das taças sujas de champanha, ajeitou os cabelos, e começou a revirar aquela caixa, que mais era um reservatório de nostalgia. Seus dedos tocaram em algo que parecia um clipe; era uma foto presa a um bilhete. Nela, algo que parecia ser continuação da fotografia que ela encontrara no chão. Os dois jovens riam sob os respingos do chafariz da praça central da cidade. Uma noite perfeita de inverno molhada pelas gotas geladas do chafariz. Arrancou o clipe que prendia o bilhete à foto e desdobrou aquele pequeno papel amassado e desbotado pelos anos.

Em uma caligrafia cuidadosamente floreada, as palavras diziam:

Eu não queria que as coisas terminassem assim, ou melhor, eu nem bem ao certo sei por quê elas terminaram, você não me deu um motivo plausível.
Olha, é o terceiro bilhete que eu lhe escrevo. Os outros dois estão aqui, amassados, rabiscados, porque eu não sabia como lidar com as palavras, assim como você não soube lidar com meus sentimentos; você simplesmente os amassou, riscou e mandou-os para o lixo.
Aqui vai uma foto, prova que um dia eu fui feliz com você. Eu poderia ter tido mais coragem, indo falar diretamente contigo. Eu sei. Mas sinto-me mais forte escrevendo, o papel não leva as lágrimas que derramo agora, você não precisa me ver chorar.
Aproveitei quando você deixou seu caderno sozinho sobre a mesa durante o intervalo das aulas e coloquei este bilhete dentro dele. Não se preocupe ninguém viu e, por favor, ao menos o leia e reflita. Agora é sua vez de pensar, porque eu já estou cansado de pensar em você.

Uma lágrima começou a escorrer-lhe pelo rosto enquanto ela passava seus olhos sobre aquelas palavras. Ter a capacidade de ser absorvida pelo mesmo sonho ela queria, mas não pelo passado. Afastou as cobertas, secou as lágrimas, amassou o bilhete com uma das mãos e rasgou a foto no meio. A culpa não era dele, eles se separaram por motivos dela, somente dela.

Deitou-se no sofá e fechou os olhos, absorta em seus pensamentos.

1 comentários alheios:

Isaque Criscuolo on 7 de fevereiro de 2010 às 09:54 disse...

Que texto belíssimo! Me arrepiou da primeira a última palavra pela intensidade de sentimentos e clareza dos mesmos. Confesso que não consigo ler ouvindo música, mas ela também é encantadora.
Ah, Ligiane, menina de palavras mágicas, doces e valiosas. Continue! Continue escrevendo e encantando o mundo preto e branco de outros escritores. Beijo!